📖 Capítulo 1 – O Encontro Virtual
Manuela vinha de um período de solidão. Apesar de ser rodeada de pessoas no trabalho e na família, havia dentro dela um vazio que pedia companhia, alguém para dividir conversas, risadas, talvez até sonhos. Foi por isso que, numa noite comum, resolveu baixar um aplicativo de relacionamento. Não buscava um amor desesperadamente, mas queria sentir-se aberta para novas possibilidades.
Ao deslizar pelos perfis, não tinha grandes expectativas. Rostos que iam e vinham na tela, frases feitas, descrições que pouco revelavam de verdade. Até que apareceu Gisela.
No perfil, uma foto séria, olhar marcante, jaleco branco – médica. A profissão chamou atenção, assim como a aparência. Manuela pensou:
“Parece interessante… vou dar uma chance.”
A troca foi imediata. Gisela respondeu quase no mesmo instante, como se já estivesse esperando.
— Oi, Manuela. Que bom que você apareceu pra mim…
A conversa seguiu rápida, cheia de perguntas e respostas. Gisela era atenciosa, sabia conduzir o diálogo, mas havia algo estranho: uma intensidade exagerada para alguém que mal a conhecia. Em poucas horas, já queria levar a conversa para o WhatsApp.
Manuela hesitou. Uma voz interior a alertava, mas ela acabou cedendo, pensando que não havia mal em continuar o papo fora do aplicativo. Assim, trocaram números.
Foi aí que Manuela percebeu o primeiro peso invisível.
Ao receber as mensagens de Gisela, uma sensação ruim tomou conta dela — um incômodo difícil de explicar. Não eram as palavras em si, mas a energia que vinha por trás delas. Como se tivesse algo de sufocante, de estranho, que não combinava com a leveza que ela esperava de um primeiro contato.
Ainda assim, tentou se manter aberta.
Durante o dia, trocaram mensagens sobre coisas comuns: hobbies, gostos musicais, rotina. Até que, já no fim da tarde, Gisela fez um pedido que deixou Manuela em alerta:
— Me passa o teu endereço? Quero te conhecer hoje mesmo, pessoalmente.
Manuela franziu a testa diante do celular. Era a primeira conversa delas e já havia esse tipo de pedido? Sentiu o coração acelerar, mas respondeu com calma:
— Acho melhor não. Eu não passo meu endereço assim. Se for pra gente se conhecer, tem que ser em um lugar público, com calma. Afinal, é a primeira vez que a gente tá se falando.
Do outro lado, silêncio por alguns segundos. Logo em seguida, uma enxurrada de mensagens:
— Mas eu senti que você é a mulher da minha vida. Eu preciso te ver, preciso confirmar isso de perto.
— Não quero perder tempo. Você é perfeita pra mim. A gente pode se casar, construir uma vida juntas.
Manuela arregalou os olhos. Casamento? Perfeita? Aquilo soava desproporcional, até assustador.
Ela respirou fundo, tentando não ser ríspida:
— Gisela, calma. Eu não estou procurando nada disso agora. Quero amizade primeiro, e só. Vamos devagar.
Mas o tom insistente não cessava.
E, pela primeira vez, Manuela sentiu um arrepio na espinha, como se um aviso silencioso tivesse soado dentro dela: algo naquela mulher não era normal.
Mesmo assim, por compaixão, decidiu continuar conversando. Talvez Gisela só estivesse carente. Talvez fosse apenas ansiedade. Mas, no fundo, Manuela já pressentia: aquilo poderia se transformar em algo perigoso.
📖 Capítulo 2 – A Insistência
Depois da primeira conversa, Manuela tentou acreditar que estava exagerando. Pensou que talvez Gisela fosse apenas uma pessoa ansiosa, com pressa em viver, dessas que não gostam de esperar o tempo natural das coisas. No fundo, queria dar uma chance de amizade — mas já havia uma muralha invisível se erguendo dentro dela.
Nos dias seguintes, as mensagens de Gisela se tornaram uma chuva constante. Desde o amanhecer até a madrugada, sempre havia notificações no celular:
— Bom dia, minha futura esposa.
— Já pensei em como seria acordar ao seu lado.
— Você não entende, Manuela, mas eu tenho certeza de que é você. Só você.
A cada frase, Manuela sentia o peito apertar. Era cedo demais para tanta intensidade, cedo demais para juras que mais pareciam prisão do que afeto. Tentou, várias vezes, colocar limites:
— Gisela, a gente acabou de se conhecer. Você tá indo rápido demais.
— Eu não quero namoro, não agora. Quero amizade, apenas isso.
Mas Gisela reagia como se não ouvisse.
— Você fala isso porque ainda não me viu pessoalmente. Quando a gente se encontrar, tudo vai mudar.
— Eu vou provar que sou a mulher perfeita pra você.
A palavra provar soava estranha, como se Gisela estivesse em uma competição contra o mundo para conquistar algo que Manuela jamais havia prometido.
Um dia, Manuela sugeriu:
— Se for pra gente se ver, que seja em um lugar público. Não quero você na minha casa, nem passando meu endereço.
A resposta de Gisela veio rápida, quase como uma ofensa:
— Por que tem tanto medo? Eu só quero cuidar de você, te amar. Você não confia em mim?
Era como se Gisela tentasse inverter a situação, transformando a prudência de Manuela em desconfiança injusta.
E, mesmo assim, ela insistia. Todos os dias.
Manuela passou a sentir uma pressão silenciosa. O celular, que antes era fonte de distração e alegria, tornou-se uma algema. Cada notificação trazia junto um peso, uma ansiedade, uma sensação de que estava sendo observada.
Às vezes, Gisela escrevia coisas doces, como se fosse uma pessoa carinhosa. Mas, logo em seguida, vinha um tom de cobrança, como se Manuela tivesse uma dívida a pagar simplesmente por estar ali.
E, pouco a pouco, o medo começou a se misturar com a pena.
“Ela parece tão sozinha… E se eu estiver sendo dura demais?” — pensava Manuela, tentando justificar aquela insistência.
Mal sabia que estava entrando em uma espiral perigosa, onde compaixão e culpa seriam usadas contra ela.
📖 Capítulo 3 – A Obsessão
Com o passar dos dias, Manuela começou a perceber que a insistência de Gisela não era apenas ansiedade: era obsessão.
As mensagens chegavam sem parar, em todos os horários. Se Manuela demorava alguns minutos para responder, o celular já vibrava novamente com frases cheias de cobrança:
— Você não gosta de mim, né?
— Tá falando com outra pessoa?
— Eu sei que você vai acabar me abandonando.
Manuela tentava responder com paciência, mas a cada dia sentia-se mais sufocada.
— Gisela, por favor, eu já disse que quero apenas amizade.
— Você está confundindo as coisas.
Mas não adiantava. Gisela parecia surda para qualquer limite que Manuela colocasse.
Quando não estava cobrando atenção, Gisela se declarava de forma exagerada:
— Você não entende, eu penso em você o tempo todo.
— Eu não consigo viver sem falar contigo.
— Você é o ar que eu respiro, a razão da minha vida.
Essas palavras, que poderiam soar românticas em outro contexto, para Manuela vinham carregadas de peso e medo.
Era como se Gisela tentasse aprisioná-la em um laço invisível, usando culpa e desespero como correntes.
Houve momentos em que a situação ficou ainda mais tensa.
Se Manuela não estivesse online, Gisela mandava dezenas de mensagens seguidas, e até ligações, tarde da noite.
Se Manuela dissesse que estava cansada ou ocupada, Gisela interpretava como rejeição.
— Eu sabia. Você não me quer de verdade.
— Você vai me deixar como todo mundo deixa.
— Eu não sou nada sem você.
Manuela passou a sentir uma mistura de emoções: pena, raiva e medo.
Tinha vontade de bloquear, de cortar contato, mas algo a segurava. Talvez fosse compaixão pelo sofrimento que Gisela dizia carregar, talvez fosse o receio de piorar a situação.
Foi então que Gisela começou a revelar fragmentos de sua vida:
— Eu tô afastada do trabalho faz dois anos.
— Faço tratamento psicológico, tomo remédio todo dia.
— Você não pode me abandonar agora…
Cada frase vinha carregada de chantagem emocional.
E Manuela, que sempre teve um coração generoso, se via presa em uma armadilha: queria ajudar, mas no fundo sabia que estava sendo sugada para dentro de um turbilhão que não era dela.
O celular passou a ser motivo de ansiedade. Cada toque era um alerta. Cada mensagem era uma faca que cortava sua paz.
E, pouco a pouco, Manuela começou a perceber que não estava mais no controle daquela relação.
O que havia começado como um simples “olá” em um aplicativo agora já se transformava em um cativeiro emocional.
E ela sabia: cedo ou tarde, aquilo iria explodir.
📖 Capítulo 4 – O Surto
Manuela já estava esgotada. As conversas, que antes eram apenas insistentes, haviam se tornado verdadeiros interrogatórios.
Qualquer palavra que dissesse era distorcida, qualquer silêncio era interpretado como abandono.
Até que, em uma tarde sufocante, a tensão chegou ao ápice.
Manuela tentou, mais uma vez, ser firme:
— Gisela, eu não quero namoro. Eu já falei várias vezes. Não adianta insistir.
Do outro lado, veio um silêncio que parecia pesado. Por alguns minutos, nada. Depois, uma sequência de mensagens apressadas:
— Você tá brincando com meus sentimentos.
— Eu não vou aceitar isso.
— Você não sabe o quanto eu te amo.
Em seguida, áudios longos, chorosos, com voz trêmula. Manuela, já cansada, não respondeu. Precisava respirar, precisava se afastar daquele peso.
Foi então que o celular apitou novamente.
Mas dessa vez não era um áudio, nem uma mensagem de texto comum. Era um vídeo.
Com mãos trêmulas, Manuela deu play.
O que viu fez seu coração disparar: Gisela, diante de um espelho, gritava palavras confusas, até que, num movimento brusco, desferiu um soco contra o vidro. O espelho trincou, o vidro da janela se quebrou. Em segundos, o braço de Gisela estava coberto de sangue.
Logo em seguida, mais fotos chegaram. Imagens da mão cortada, vermelha, pingando.
Mensagens desesperadas inundaram a tela:
— Tá vendo o que você fez comigo?
— Olha só o que eu sou capaz por você!
— Se você não ficar comigo, eu não aguento viver.
Manuela ficou paralisada. O choque a impediu de pensar com clareza. O estômago embrulhou, a respiração ficou curta. Uma mistura de medo, culpa e impotência tomou conta dela.
Enquanto tentava raciocinar, outra mensagem chegou:
— Tô indo pra UPA. É por sua causa. Só porque você não quer me amar.
Naquele momento, Manuela sentiu uma vertigem. Percebeu que a linha havia sido cruzada.
Não era apenas insistência. Não era apenas carência.
Era perigo.
Pela primeira vez, ela sentiu medo real de estar presa em algo que poderia destruir não só sua paz, mas sua própria vida.
E, dentro dela, um grito silencioso ecoava: “Eu preciso sair disso. Preciso sair antes que seja tarde demais.”
📖 Capítulo 5 – A Libertação
Depois do surto de Gisela, Manuela passou noites sem dormir. As imagens de sangue, as mensagens de desespero e a culpa que lhe foi jogada pesavam em sua mente como correntes.
Ela se perguntava, em silêncio:
“Será que eu sou a culpada? Será que abandonei alguém que precisava de mim?”
Mas, no fundo, sabia a resposta: não.
O que estava acontecendo era uma prisão emocional, uma manipulação perigosa que drenava suas forças e colocava sua vida em risco.
Foi então que tomou a decisão de procurar ajuda.
Na terapia, aos poucos, conseguiu dar nome ao que vivia: chantagem emocional, manipulação, relacionamento abusivo.
A psicóloga foi clara:
— Manuela, você não é responsável pelas escolhas de Gisela. Cada pessoa precisa cuidar da própria vida. E antes de pensar nos outros, você precisa cuidar de você.
Essas palavras ecoaram dentro dela como um despertar.
Pela primeira vez, Manuela entendeu que não era egoísmo pensar em si mesma. Era sobrevivência.
Naquela mesma semana, depois de muito refletir, tomou coragem. Com as mãos firmes, abriu o celular, foi até as conversas e, sem hesitar, bloqueou Gisela em tudo.
Um silêncio tomou conta da tela. Mas, dentro de Manuela, foi como se uma janela tivesse se aberto.
Respirou fundo, sentindo um ar leve que há muito tempo não respirava.
Sim, havia medo do que poderia acontecer com Gisela. Sim, havia compaixão.
Mas, acima de tudo, havia a certeza de que tinha feito o que precisava: se libertar.
Manuela seguiu em frente. Continuou a terapia, aprendeu a reconhecer os sinais de um relacionamento tóxico desde o começo e, mais do que isso, fortaleceu-se para nunca mais se deixar aprisionar em correntes invisíveis.
🌙 Moral da História
Essa experiência ensinou a Manuela — e pode ensinar a qualquer um de nós — que:
Amor não nasce da pressa nem da obsessão.
Quem pressiona, manipula ou ameaça não ama: tenta controlar.
Ninguém é responsável pelas escolhas autodestrutivas do outro.
E o mais importante: cuidar de si mesmo é o primeiro passo para se libertar de relações perigosas.
Bloquear, nesse caso, não foi covardia. Foi um ato de coragem.





